sexta-feira, 17 de novembro de 2017

ARY

Brevíssima Antologia da Poesia Com Certeza
J.C. ARY DOS SANTOS / 1973

Morramos todos por isso
Mais por isto e por aquilo:
no açougue do toutiço
a poesia morre ao quilo.
/
Carne gorda carne magra
raramente entremeada
com açorda com vinagre
poucas vezes com mostarda
cheira mal diz a comadre
cheira bem fareja o frade
e logo responde o padre
em tom de falso derriço:
Morramos todos por isso
atados como o chouriço!
/
Só a textilopoesia
nesta meada das letras
muitas vezes desenfia
um colar de contas pretas:
Dona Ernesta vai à missa
toda bordada a missanga;
faz poemas com alpista
tira fonemas da manga
e devotada e artista
diz em tom de lenga-lenga
a oração concretista
da melhor raça podenga:
Deuspeus paipai é quepe
estes poemas fezpez:
— Melo e Caspa faz poemas
como quem tem dores nos pés.
/
Diz o Alexandre O'Neill
que às vezes lhe falta um til.
Ora ponha-o na cabeça
para ver como se acaba
o que depressa começa
quando a chegada desaba!
Mas se não fosse o O'Neill
Portugal não tinha Abril.
— Ai meu adeus pequenez
o que será deste mês
se nos não chove de vez?
Bem choveu. Ele que fez?
Tropeçou-nos de ternura
a todos como bem quis.
Em Lisboa amor procura
Alexandre Português
que é gaivota e não o diz.
/
Já o mesmo não direi
— que me desculpe o Pacheco —
de dona-fiama-irei-
-ao-fundo-do-mar-a-seco.
/
Descobriu monstros marinhos.
É certo. Mas foi por eles
que errando pelos caminhos
ficou cecília mais reles.
/
Vila do Conde é maior
que todo o fundo do mar
e o Zé Régio é o melhor
descobridor a cantar.
Se a poesia é uma ostra
em Portalegre cidade
acha a pérola quem mostra
a invenção da verdade.
Na varanda do suor
em tristalegre saudade
José Régio fez um filho
que lhe nasceu por amor
e já de maior idade.
/
Também Natália é parida
do parto de suas dores
e faz poemas que dançam
toucados de mosto e flores.
/
Natália ninfa nascida
na ilha de seus amores
quando Camões lhe deu vida
por outros descobridores.
/
Sei bem que tal não agrada
a Dom Frei Gastão da Cruz
que só não é agostinho
por falta de água e luz.
/
Mas um poeta mesquinho
a própria água reduz
quando mija em vez de vinho
desperdícios de alcatruz.
— Pois que mije a toda a hora
e que vá puxando à nora...
/
Mas há coisas que se puxam
que não podemos saber
coisas que nascem estrebucham
antes de alguém as dizer:
Viva o Zé Gomes Ferreira
quando inventa uma roseira.
Viva o Manuel da Fonseca
quando nos fala da seca
e viva Miguel que outorga
as livre mesmo que morda.
/
E tu e tu que me pões
um mago dentro da cama
filho do pai de Camões
Mário de rosas e lama
Cesariny Vasconcelos
nomes que a choldra não grama
porque tu não vais com eles
e ficas em verde rama
tocando no bolso esquerdo
os nomes de quem te chama.
/
Só é poeta quem perde
o corpo de quem mais ama
— Isto o dirá em verdade
o grande Eugénio de Andrade.