quinta-feira, 24 de agosto de 2017

SAUNDERS & ZADIE


Hoje na Sábado escrevo sobre Lincoln no Bardo, o primeiro romance de George Saunders (n. 1958), contista laureado praticamente desconhecido no nosso país, embora duas das suas colectâneas de contos, entre elas a incontornável Pastoralia, estejam traduzidas. Lincoln no Bardo é a sua obra mais recente. Saunders pegou num episódio delicado, a depressão que tomou conta de Abraham Lincoln após a morte do seu terceiro filho, Willie, vítima de tifóide aos onze anos. Eram comentadas as visitas nocturnas do Presidente à cripta da criança, em Oak Hill, facto peculiar na medida em que não fora caso único: três dos seus quatro filhos morreram antes de atingirem a idade adulta (sobreviveu apenas o primeiro). Curiosidade adicional: o livro levou quatro anos a escrever mas o plot decorre todo ao longo de uma única noite. Saunders terá tido acesso a detalhes da reacção post mortem, e do excruciante sofrimento de Lincoln, servindo-se deles para pôr de pé o romance. Como sempre, o discurso não é linear. Dito de outro modo, Lincoln no Bardo não é um romance que siga o padrão canónico. O leitor comum talvez seja surpreendido por alguns tiques de escrita: nomes próprios grafados em letra minúscula, monólogos desconexos por via de certa filiação à literatura do absurdo, excertos de jornais da época (estava-se no auge da Guerra de Secessão), trechos de mnemónica, vozes fantasmáticas, citações e outro material avulso com que compõe um patchwork tendo como denominador comum a morte. Em suma, não é um livro fácil. No Tibete chama-se bardo ao “trânsito” entre morte e reencarnação. Isso explica o sentido do título do livro, ou seja, o karma que Saunders atribui a Lincoln. Não admira portanto que a sociedade americana seja vista pela intermediação mediúnica de fantasmas: caçadores, soldados, funcionários, assassinos, etc. Quem quiser encaixar Saunders numa genealogia, pode socorrer-se de Edgar Lee Masters e, em particular, na famosa Spoon River Anthology (1915) e as suas vozes do Além. Na realidade, Saunders pretendeu fazer a biografia de uma fase dolorosa da vida de Lincoln. E faz isso muito bem, ressalvado o excesso de pirotecnia semântica. Mas não é fácil escrever sobre os efeitos da depressão. Quatro estrelas. Publicou a Relógio d’Água.

Escrevo ainda sobre Swing Time, de Zadie Smith (n. 1975). Os idiossincráticos códigos de classe e as regras sociais atinentes continuam a ser o território de eleição da autora, que escreve a partir de um ponto de vista étnico, ou seja, sem ignorar a sua origem jamaicana: Sonho com a Jamaica, sonho com a minha avó. Recuo no tempo… Tal como em NW, uma história de Londres, Swing Time ilustra o lugar dos deserdados da sociedade de consumo. Escrito na primeira pessoa, pode ser lido como um compósito de memórias. A narrativa começa em 1982, ano em que tanto a narradora como a autora têm sete anos de idade. Como em obras anteriores, o tempo da acção é longo. Durante vinte e tal anos acompanhamos as vidas de duas amigas, ambas mestiças. Dois destinos, duas formas de encarar o mundo. A escrita de Smith é vertiginosa, rica de subtilezas, atenta aos detalhes mais prosaicos. Há quem veja na figura de Aimee, a estrela planetária com ambições filantrópicas, um ‘retrato’ de Madona. África não surge por acaso. Temas como a ajuda ocidental, a moda da adopção de crianças por estrangeiros ricos, mas também o turismo sexual, são desmontados pela autora. Quatro estrelas. Publicou a Dom Quixote.