quarta-feira, 30 de novembro de 2016

ISABELA FIGUEIREDO


Por amanhã ser feriado, a Sábado saiu hoje. Nesta edição escrevo sobre A Gorda, de Isabela Figueiredo (n. 1963). Não é novidade mas convém repetir: a autora mudou o paradigma da literatura pós-colonial em língua portuguesa. Dito de outro modo, pôs um ponto final nos relatos delicodoces da borrasca imperial. Fez isso ao publicar o corrosivo Caderno de Memórias Coloniais, obra estudada em várias universidades, sobretudo anglo-americanas, e não amacia o tom no romance A Gorda, acabado de chegar às livrarias. Como Isabela não tem medo das palavras, nem escreve para agradar aos lobbies dominantes, o resultado desconcerta os incautos. Em Portugal há temas que qualquer aspirante a escritor interiorizou como interditos. O resultado é uma ficção dissociada da realidade. Os mais inteligentes (estou a falar da geração sub-50) deslocam o epicentro das narrativas para fora de fronteiras, e os outros, com raras excepções, debitam prosas pífias sobre vacuidades. Isabela faz tudo ao contrário. Chama as coisas pelos nomes, ignora os moldes que sobraram do nouveau roman, exorciza o beatério pequeno-burguês e fornica a céu aberto: «Montada sobre ele […] não pertenço a lugar algum, sexo e cérebro são uma esfera de luz-prata na qual nos suspendemos por segundos, não mais, cegos, só dor luminosa no lugar do nada…» Nenhum resquício de auto-complacência: internato da Lourinhã, formação escolar, clivagens sociais, gastrectomia como móbil, impecilhos da meia-idade, fronda dos professores durante o socratismo, Diktat alemão, o filho que não houve, doença e morte do pai e da mãe. Nos interstícios, percalços de um amor proibido. Mesmo quando nos fala de psichés de umbila ou de botecos da Arrentela, Isabela não faz outra coisa senão desmontar os clichês do realismo indígena. Tudo visto da outra margem. A história de Maria Luísa, a tal que deveio Gorda, expatriada de Moçambique aos 12 anos de idade, crescendo e fazendo-se mulher até ao regresso da família dez anos mais tarde. O fluxo de consciência ou, se preferirem, o monólogo interior, isenta-se de qualquer espécie de edulcorante: «A triagem remeteu-me para a psicanalista do Campo de Santana, na qual passaria os cinco anos seguintes a matar o papá.» Desenganem-se aqueles que supõem A Gorda uma obra sobre as sequelas da descolonização. Não é. O livro inclui a trilha sonora adequada. Da lista proposta recomendaria One, dos U2. Cinco estrelas. Publicou a Caminho.

Escrevo ainda sobre Paris França, de Gertrude Stein (1874-1946). A minha geração ainda se lembra dela, porque ela foi uma percursora do que mais tarde se chamaria literatura gay. Em 1903, Gertrude publicou Q.E.D., o primeiro livro em que o termo gay foi utilizado no sentido actual. Mesmo em 1933, quando saiu The Autobiography of Alice B. Toklas (as memórias de Gertrude por intermédio da voz de Alice, sua companheira de toda a vida), ainda era pouco comum. Tendo vivido parte da infância em Paris, Gertrude regressou aos Estados Unidos para fazer estudos universitários (medicina, psicologia e filosofia), radicando-se em Paris aos 26 anos. Não admira que a obra suscite curiosidade. Afinal, trata-se do livro em que Gertrude discorre sobre a cidade onde viveu até morrer. Pela sua casa passaram todos os Modernistas, bem como toda a gente que foi importante na primeira metade do século XX. Picasso, Hemingway e Pound eram habitués. Mas Paris França não se ocupa do salão da Rue de Fleurus. É uma memorabilia dos primeiros anos, cheia de aforismos: «a França podia ser civilizada sem pensar no progresso». Os puritanos vão execrar o lugar de destaque dado à gastronomia. Quatro estrelas. Publicou a Relógio d’Água.