quinta-feira, 23 de junho de 2016

JOHN BANVILLE


Hoje na Sábado escrevo sobre A Guitarra Azul, o romance mais recente do irlandês John Banville (n. 1945). Sejamos claros: Banville deveio clássico. Dezassete romances, um diário de viagem a Praga, bem como peças de teatro, fizeram dele uma referência incontornável. Excluo do inventário os dez livros da saga The Quirke, que assinou com o pseudónimo Benjamin Black. Contados pelos dedos de uma mão, a Europa não tem hoje, vivos, autores que possam medir-se com ele. O título vem de um poema de Wallace Stevens citado em epígrafe. Banville conta a história de um homem hipocondríaco, rechonchudo, outrora pintor. Nenhuma espécie de complacência para Oliver Otway Orme: «Uns quantos de vós, amantes da arte, inimigos da arte, talvez vos lembreis do nome, de tempos idos.» É o retrato de alguém à deriva nas contradições da meia-idade, ilusões perdidas, sarcasmo bem calibrado. Agora, Orme prefere que lhe chamem Autólico. E pindor em vez de pintor, porque pindor representa o «mestre da dor». Podia ter saído de um romance de Doitoievski ou Nabokov. Todos sabemos que Banville é exemplar na forma como fixa o perfil das personagens. Quem leu O Intocável, romance sobre Anthony Blunt (o professor e curador de arte da família real britânica que Thatcher denunciou no Parlamento como fazendo parte do quinteto de espiões de Cambridge), ou a trilogia dedicada a Copérnico, Kepler e Newton, sabe do que falo. Neste caso, há qualquer coisa de compósito, ou familiar, entre Orme e personagens de obras anteriores. Não é inocente que seja alguém obrigado a sobreviver ao “fracasso”. A intriga é velha como o mundo: amigo rouba mulher ao melhor amigo. Banville não inventa a roda. Trata de literatura e faz bom uso das ferramentas, sem retórica ou piruetas. A escrita enxuta é de regra, como ilustrada pela descrição de um piquenique: «pão, queijo, vinho e chuva». Os envios ao passado (e, em especial, à casa da infância) são um estratagema eficaz, do mesmo passo que as remissões de índole erudita dão espessura ao plot. É raro, mas acontece: um romance em que nenhuma palavra é supérflua. Cinco estrelas. Publicou a Porto Editora.

Escrevo ainda sobre Ensaios Escolhidos, de George Orwell (1903-1950). Para o grande público, Orwell é sinónimo de Mil novecentos e oitenta e quatro, o romance de 1949 que antecipou o formato Big Brother das sociedades actuais. Mas Orwell escreveu outro tipo de livros, como por exemplo Homenagem à Catalunha, sobre a sua experiência na Guerra Civil Espanhola. Entretanto, um conjunto de textos avulsos, grande parte deles escritos durante a Segunda Grande Guerra, foi coligido em Ensaios Escolhidos. O que fecha o volume, um texto não concluído sobre Evelyn Waugh, é o exemplo perfeito da sua heterodoxia, ao defender sem complexos o reaccionarismo do autor: «O que Waugh tenta fazer é usar o febril e inculto mundo moderno como contraponto para a sua conceção de um modo de vida bom e estável.» É largo o espectro de temas. A independência da Índia, a sua passagem pela polícia birmanesa, os ditirambos da crítica, as idiossincrasias de Dalí («um biltrezinho imundo»), a poesia de T. S. Eliot, o equívoco nazi de P. G. Wodehouse, consequências do nacionalismo, Tolstoi vs Shakespeare, o caso Ezra Pound e outros. Absolutamente essencial. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d’Água.